terça-feira, 12 de abril de 2016

Doce arte

  

Finalmente tudo estava pronto: toalhas sobre as mesas, arranjos florais em pontos estratégicos, refrigerador no máximo, algumas palavras - "você é lindo até fumando, mas pode ser lindo sem fumar" - escritas numa pequena lousa vizinha de um cinzeiro, ambos deixados num local reservado para o único amigo fumante; e a playlist alternando entre sambas e versões acústicas. "Quase tudo", ela disse para o amigo anfitrião. Eram ainda cinco da tarde, encontro marcado pras seis, ela tinha tempo suficiente pra ir até o mercadinho da esquina, comprar saquinhos coloridos, barbante e transformar aquela sobra de ingredientes da sobremesa numa lembrancinha para os convidados.

Antes de sair contou quantos bombons haviam restado da produção do pavê e foi até o mercado distribuindo-os mentalmente entre os amigos que chegariam dali pouco menos de uma hora. Faltavam ainda quinze minutos para as seis quando o anfitrião retornou do banho e a encontrou na cozinha, uma cesta à sua frente com diversos saquinhos de presente iguais o que ela amarrava naquele momento. "Você fez tudo sozinha?" ele perguntou, ela disse que sim e virou pra ele um sorriso antes de dizer que só faltava mais um. "Estão lindos", ele disse antes de pedir que deixasse aquele último ser o dele. "Quero comer um doce agora e você precisa ir se arrumar, porque o pessoal já deve estar chegando".

Seus amigos eram pontuais, com exceção do fumante que era o único ainda não presente no jardim quando ela apareceu pronta às seis e meia. Ele chegou já depois do jantar, meio bêbado e reclamando da música. "Poxa, gente, é um encontro de amigos ou viemos velar um corpo?", ele perguntou antes de tirar o aparelho conectato e plugar o próprio celular nas caixas de som. "Não precisamos deixar de ouvir Caetano, mas que tal esse Caetano?" e a voz do cantor baiano se misturava às dos outros integrantes dos velhos Novos Baianos. Olhares tortos. "Tudo bem, vou colocar a música chata de novo", ele disse antes de desfazer a troca de aparelhos e acender um cigarro a caminho do local que ela reservara pra ele.

Talvez devesse ficar por ali, longe dos olhares recriminadores. Olhou para a lousa próxima ao cinzeiro e, tivesse um espelho à sua frente, veria seu próprio olhar o recriminando. Duas semanas antes ele havia recebido o convite: uma mensagem de voz dela contando sobre o desejo de se aventurar gastronomicamente e pedindo que ele fosse uma das cobaias para tal experimento - que seria dali uns dias talvez, mas ainda sem data certa. Ele deu palpites no cardápio, produziu um convite virtual e prometeu que, fosse o dia que fosse, lhe ajudaria com os preparativos. Promessa não cumprida e ela ainda se dera ao trabalho de investir tempo num lugar reservado pra ele. Estava lendo a lousa novamente quando a ouviu a voz dela.

"Hora da surpresa", ela gritou antes de ir até a cozinha e voltar com aquela cesta cheia de saquinhos nas mãos. "Eu fiz contado" ela falou depois de driblar as mãos estendidas do anfitrião. "Mas contei comigo também, então fica com o meu", ela disse e sorriu, grata por ele ter gostado tanto da receita dela. Distribuiu entre os demais e, com um único saquinho em mãos, se dirigiu até o local reservado para o amigo fumante. Ele pediu desculpas pelo atraso, ela disse que não tinha problema e que tinha guardado um pouco de cada coisa pra ele comer, se quisesse. "Ó, não é nada demais", ela disse depois de entregar o saquinho pra ele, "mas é que sobraram uns bombons e eu inventei isso aí".

Ele agradeceu, ela o convidou para se juntar aos outros e ele disse que ia em seguida. "Ela sempre fazendo tudo ser mais lindo com nada demais", ele pensou enquanto sorria. Desamarrou o laço e em menos de dois minutos já tinha comido os três bombons trazidos dentro do saquinho. Arrancou um pedaço de papel do maço de cigarros, escreveu umas poucas palavras seguidas da data - "hoje eu comi o doce mais gostoso do mundo feito pela menina mais doce do mundo" - jogou dentro do saco vazio, amarrou o laço novamente e guardou-o cuidadosamente no bolso da calça. Só aí deu-se conta que os outros ao longe já se despediam todos. "Carapanã encheu, voou", ele lembrou do dito popular em sua terra e talvez fosse hora de ir também.

Ainda estava meio bêbado. "Me espera lá no portão, vou só tirar água do joelho e já pegarei o caminho da roça", ele gritou antes de seguir para o banheiro. Quando voltou estavam apenas ela e o dono da casa esperando-o no portão. "Só dois beijinhos", ele disse enquanto estalavam a boca de um nas bochechas do outro, "esqueci de lavar as mãos quando saí do banheiro", ele explicou já a caminho do carro. Ela riu daquele jeito engraçado dele e, portões já fechados, o amigo anfitrião disse que a surpresa dele era a faxineira contratada pra limpar tudo no outro dia. "Vou só pegar umas coisas lá atrás", ela disse depois de agradecer pela ajuda, sem saber da vindoura vontade de chorar.

Sobre a mesa cheia de pratos e talheres sujos estavam quatorze saquinhos fechados, cada qual com três bombons. Sem contar ela e o dono da casa, dez minutos antes haviam quatorze pessoas sentadas ao redor daquela mesa. Ela estava tão feliz que acabou esquecendo o que o amigo fumante pensava, naquele exato momento a caminho de casa, com as mãos sujas de giz: não importa o quanto ela se importe, algumas pessoas simplesmente não se importam. Pegou a bolsa, deixou a primeira lágrima escorrer e três ou quatro mais de cada lado enquanto guardava nela o cinzeiro. Foi quando avistou a lousa alterada: "Sorria! Você tem o sorriso mais doce do mundo. Isso aqui é pra você" e uma seta apontava para um papel dobrado no canto direito da moldura.

Quando o amigo anfitrião gritou seu nome, quase dez minutos depois, ela já havia perdido as contas de quantas lágrimas não conseguira segurar enquando lia o bilhete cheio de manchas de giz. "Eu pensei em pegar todos, mas você iria perceber meu excesso de bolso. Não queria te ver mal num dia em que te vi tão bem. Mas independentemente do que eu queira ou não, não posso te esconder a verdade, e a verdade é: quando a gente transforma em arte aquilo que nos faz sofrer, acabamos encontrando outros caminhos, foi você quem disse, lembra? Vê aí o que você vai fazer com aqueles sacos sobre a mesa. Tenho certeza que vai ser uma ideia melhor e bem menos egoísta do que a minha de encher os bolsos", e ainda que não conhecesse a caligrafia, o papel rasgado do maço de cigarro não deixava dúvidas da autoria daquelas palavras.

No dia seguinte, cedo da manhã, quatorze moradores de rua tiveram o dia iluminado pelo sorriso dela. E sorriram doce o dia todo, obra de arte dela, a menina dos doces que com o sorriso mais doce do mundo conseguia fazer sorrir aqueles que sabiam sorrir de verdade.

3 comentários:

  1. cara... tô quase chorando com isso... MARAVILHOSO!!!! adorei, amei, etc, sei nem o que dizer: perfeito!

    e me deu uma vontadinha de comer doces gostosos, igual esse conto delicioso!

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  2. Obrigada por existir Gênioronymo

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