quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Além do corpo

 

Tento te erotizar e não consigo. Viajo nas lembranças até aquele oceano que só cabia nós dois, tentando isolar o que o coração sentia para falar só do que eu, como bicho homem, pensei e pensei e pensei tantas vezes fazer. Mas eu não consigo. Porque pensar em ti não remete só à carne, mas ao arrepio da pele que precisa de poesia para se revelar.

Não porque te ache criança inocente, pelo contrário. Defino seu corpo pelas palavras, excito-me mais por imaginar nossos corpos colados que encaixados. Você me faz sentir como se no aguardo de novas posições, novos jeitos de entrelaçar os corpos, novas experiências que teus anos a menos entregam ter pelo brilho nos olhos e a pele quente.

É difícil te erotizar porque, por mais convidativo ao prazer que seja estar com você, te enxergo além do corpo. E fazer sexo com você não me seria diferente. Porque eu quero adormecer sentindo teu corpo junto ao meu. E antes de adormecer eu quero te abraçar e beijar sua nuca e dizer que só saio daquele lugar porque é segunda e eu preciso ir trabalhar.

E eu não quero te erotizar na minha mente, porque seria como te idealizar na cama. E, se isso acontecer, eu não quero ter imaginado nada. Porque, cada vez eu olho pra ti, sinto mais vontade de simplesmente te conhecer. E ir conhecendo aos poucos. Eu quero conhecer teu corpo assim, me surpreendendo a cada nova descoberta. Te erotizar elimina a surpresa. E você é surpreendente demais para que eu estrague isso.

Se lembrar


 

Depois de uma noitada então, com muita bebedeira, muita conversa jogada fora, muitas risadas, você descobre que nem tudo são flores e que a noitada foi também uma noite dos horrores, onde um lapso de tempo faz a cabeça criar milhares de possíveis histórias do que pode ter acontecido. Você não sabe como ou porque aquilo aconteceu. Tenta ligar os pontos, refazer caminhos, estabelecer conexão entre horário, mensagens, ligações dentre outros rastros de uma memória perdida. Mas só lembra de uma chegada. Ou uma partida.

Promessa cumprida: dos meus sonhos você partiu

 Oi,
Me pediram pra escrever uma carta e eu resolvi escrever pra você. É para a faculdade, sabe? Não que fosse necessário, afinal a professora tem conhecimento sobre como anda a minha escrita. Mas quis aproveitar a oportunidade como desculpa para te escrever mais uma vez.

Percorro a caneta pelas linhas do papel com os pensamentos voltados para você pela quinta vez. Mesmo consciente de que – seja pelo arquivamento no fundo da gaveta, seja pelo alcance de inúmeras pessoas se publica-la – esta carta nunca vai encontrar seus olhos, meu destinatário final.

Escrever alivia. Alivia porque, ainda que resguardadas no fundo de uma gaveta, essas palavras se extraem dos meus pensamentos, da minha saudade inexplicável e dessa angústia interminável que é a certeza de nunca poder te encontrar.

Eu só queria te dizer – poder ter dito, aliás – um primeiro oi. O que sinto aqui dentro me faz acreditar que esse simples oi já seria causa de um conforto suficiente para essa necessidade quase patológica que se tornou o meu desejo de ter te conhecido antes de te conhecer.

Eu só queria poder ter tido a chance de te dizer – repetindo o que disse em minha segunda carta – o quanto o mundo pode ser cruel com gente feita de bondade, como você. Aliás, eu queria mesmo era ter sido o porto para que você ancorasse seu barco de forma segura.

Mas você se perdeu no oceano. Sem bússola, sem mapa, sem leme que controlasse a direção. Porque aventurar-se além-mar é sempre mais atrativo quando se trata de pessoas como nós. Sim, nós, pessoas incríveis. Foi você quem me ensinou. Desculpa não ter percebido antes. Obrigado por me fazer perceber mesmo diante da dor.

Tento te deixar ir, mas é difícil. Mesmo sabendo que o que digo não será leitura dos teus olhos, a cada palavra escrita eu sinto também como se estivesse te prendendo aqui, de onde você resolveu partir. Nunca fomos nós. E ainda assim somos nós. Um dia, quem sabe, seremos de novo apenas eu e você.

Fica com Deus.
Fica em paz.

Artur

OBS.: Prometo que essa noite tentarei não sonhar com você.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Contato herdeiro


Em tempos de informações compartilhadas diariamente nas redes sociais, desfazer amizade ou bloquear alguém no Facebook é causa de guerras frias, quentes ou mornas nas relações pessoais. Relacionamentos se abalam quando não estão sérios no perfil e tem gente solteira que finge um parceiro anônimo só para atrair comentários. Eu mesmo já fiz de depoimentos e recados no Orkut a coisa mais importante no dia do meu aniversário. Mas hoje eu não dou tanta importância pra isso e ainda prefiro saber como um amigo está se sentindo mais pelas mensagens privadas que pela interpretação de suas fotos ou publicações no próprio mural.

Daí que hoje eu tive um daqueles momentos em que tenho a indiferença desafiada: o fato de não dar importância excessiva como algumas pessoas dão para as redes sociais não me exclui das estatísticas de quem enxerga o próprio perfil como uma extensão virtual de si mesmo, ainda que eivado ou não da ilusão que algumas fotos do Instagram nos passa. Sendo assim, descobri hoje que existe algo chamado Contato Herdeiro no Facebook. É literalmente a pessoa que herda a responsabilidade de excluir a conta de alguém ou administrá-la caso vire um memorial – confesso que achei essa ideia interessante.

Eu não estava me atualizando das novidades das redes sociais, até porque tenho um pé preguiçoso quando se trata de caminhar paralelo às novas tecnologias. Foi uma amiga quem me apresentou a novidade quando enviou-me um convite para ser o responsável pelo destino de sua extensão virtual quando a corporal já não estivesse mais aqui. Ainda que ciente da probabilidade de, causa naturais, sua morte preceder a minha, aquela mensagem automática foi além da intenção informativa e me deixou levemente emocionado ao fazer das últimas linhas uma declaração de amor: escolhi você pois me conhece bem e confio em você.

Lembrei que falava com ela outro dia sobre fazermos juntos uma tatuagem e isso me fez pensar sobre o quão intenso deve ser aquilo que eu sinto por alguém para marcar a pele com uma extensão do outro. Então eu li aquela mensagem e isso me fez pensar também a quem eu confiaria a herança de tudo isso que eu sou, virtual e materialmente falando. Quem seriam os contatos herdeiros de minhas senhas? A quem eu confiaria o desmoronamento dos meus esconderijos que, pós mortem, careceriam do abandono? Quem seriam aquelas pessoas cujas mãos poderiam ser as únicas capazes de construir um memorial que representasse verdadeiramente o que eu fui – inclusive quando sem olhos à vista – até o dia da minha partida?

O que sei é que com todas elas eu faria uma tatuagem. Eu minto sobre tatuagens. Mas não minto sobre meus contatos herdeiros, apenas não tenho urgência de partir para dizer quem eles são.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Louca, do bem e jardineira


Eu não lembro quando ela fumou o primeiro cigarro. Mas nunca vou esquecer todas as vezes em que nossos encontros se tornaram verdadeiras aventuras para mantermos guardados nossos segredos de nicotina. Compartilhamos experiências desde muito pequenos e, se não loucas pelo nosso atrevimento de conhecer o que nos era proibido, foram loucas pela obviedade ridícula ou pela tanta disponibilidade de tempo gasto para vive-las. Eu não lembro quando ela fumou o primeiro cigarro e ela não estava lá quando eu fumei pela primeira vez.

Mas nunca precisamos da lembrança para conhecer as loucuras um do outro. E o que eu descobri, conversando com ela algum tempo atrás, é que tem essas vezes que prefiro não estar lá quando sua realidade é invadida pela loucura – ou eu poderia ter impedido muitos atos loucos e impulsivos que fazem dela merecedora de lugar reservado no paraíso. “É uma loucura, sim”, ela me disse tão logo caracterizei assim várias de suas atitudes, “mas é uma loucura boa”.

É, é por isso que é louco, na verdade. Dificilmente consigo ser testemunha da existência de um ser humano que, ciente – por experiência própria – das dificuldades, preconceito, críticas e mais dificuldades ainda, prefira arriscar-se novamente a se acovardar diante deles, em prol da garantia de que um inocente não seja condenado ao cárcere. Um cárcere do qual ela mesma conseguiu escapar. Desde criança ela é louca. E desde criança ela é livre.

Uma vez ouvi o personagem de um programa de TV dizer que não existia atos de altruísmo, porque até mesmo um ato altruísta estava eivado da sensação de bem-estar que produzia em seu autor. Pode ser que assim realmente o seja, mas sou do tipo que acredita na existência de uma exceção para todas as regras – inclusive essa, mas não é o caso. E tem esses seres – humanos errantes e de almas tão puras – que não fazem o bem para sentirem-se bem, mas simplesmente por serem do bem.

Ela é louca porque resolveu criar uma galinha que, antes da sua mudança, já residia na casa em que sua família foi morar. “A gente se apega”, ela disse como se quisesse complementar aquela história da raposa sobre sermos responsáveis por aquilo que cativamos. Ela é louca porque, ainda que pense primeiramente nela, se segundamente seu pensamento for no outro, do primeiro ela não irá mais lembrar. Ela é louca porque, ao contrário de mim, ao invés de buscar o próprio amor, ela está fazendo-o nos outros brotar.

Amor-próprio, acredito eu, foi o que a fez livre ainda criança. Por muito tempo ela só quis mesmo que a enxergassem do mesmo jeito que conseguia se enxergar: errante, mas de pura alma. Mas, do bem como sempre foi, ela um dia percebeu que existiam tantos outros que não tinham nem a liberdade de saberem-se humanos, quanto mais o olhar de quem queriam um mínimo de dedicação. “Vou ser jardineira”, ela disse aos risos, “é uma loucura boa”.

Construiu um jardim tendo a si mesma como limite, onde juntou sementes desconhecidas, abandonadas e esquecidas – contrariando as dificuldades, preconceito, críticas e mais dificuldades ainda que outros jardineiros usaram para tentar persuadi-la da ideia – convertendo a intensidade com que queria ser enxergada antes na fé com que enxergava cada um daqueles brotinhos, fazendo com que, pouco a pouco, um a um eles se transformassem em flores belas e de perfume inigualável.

Era uma jardineira louca, todos diziam. Mas era uma loucura boa aquela dela, todos sabiam. Eu não lembro quando ela fumou o primeiro cigarro. E nós nunca precisamos da lembrança para conhecer as loucuras um do outro. No entanto eu lembro da primeira rosa que brotou naquele jardim tão cheio de amor que ela construiu durante um dos seus maiores atos de loucura. E eu não só lembro como tenho comigo essa rosa como a primeira que plantei no meu jardim. Ela é louca, porque só sendo assim para dar a um descuidado como eu o primeiro botão de rosa que ela colheu.

“Um dia essa tua felicidade passa”, ela disse enquanto eu sorria abobado com aquele jarro nas mãos, “cuidar de uma flor é mais que admirar a beleza dela na janela”. E ela não só foi a primeira como a única rosa plantada naquele jardim que secou antes mesmo que qualquer semente plantada por mim germinasse. Devolvi a rosa quase murcha e ela disse que tinha me avisado que admirar beleza não é cuidar de flor, mas que estava errada quando à minha felicidade. “Eu sei que você é descuidado, mas eu acredito o que te faz feliz é justamente o que faz você se importar. E, bem, é melhor você cuidar dos bilhetes que vão nos meus buquês e deixar as flores comigo, afinal você nunca foi um bom jardineiro né? ”.

Vez ou outra eu apareço para visitar minha rosa. Ela nunca mais murchou. Porque, louca ou não, a melhor jardineiro do mundo é ser que erra, mas de pura alma. E, do bem, não teria qualquer outro capaz de cuidar de flores tão bem quando ela.

domingo, 27 de setembro de 2015

Tatuagem


Uma vez eu fiz pacto de sangue com alguns amigos da escola. Furamos as pontas dos dedos com a promessa de sermos amigos para sempre. Éramos cerca de dez pré-adolescentes, entre as sétima e oitava série, unindo os indicadores sangrando como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo. Sim, naquele momento ela era realmente a coisa mais importante do mundo. Regra geral é apenas uma lembrança que temos: está lá, mas não está à vista. Aquele pequeno furo de alfinete não me persegue no espelho ou atrai o olhar dos outros, o que pra mim não tira o significado e a vontade de contar sobre ele, afinal fomos pré-adolescentes bem felizes – eu acho.

Foi que outro dia eu e uma amiga trocamos ideias quanto aos desenhos que faríamos para registrar no corpo aquela música que voz e ouvidos fizeram ser nossas e era a primeira vez que eu pensava sobre isso, porque ela tinha puxado o assunto. Depois da busca fracassada de uma imagem que representasse uma de minhas ideias, eu tentei explicar em palavras e o assunto encerrou. Pra nós, não pra mim. Veio então aquele pensamento envolto numa interrogação: eu realmente faria uma tatuagem com ela? Eu não sei explicar direito e minhas palavras podem soar bem insensíveis e egoístas, mas essa é uma pergunta que define bem a intensidade daquilo que eu sinto por algumas pessoas.

Isso e o desafio que seria àqueles que me botaram no mundo, afinal é por causa eles – “de outro tempo” – que até hoje eu não me risquei para homenagear eles mesmos. Eu não seria expulso de casa e eles me amariam do mesmo jeito – mesmo motivo pela qual eu irei um dia desafiá-los mesmo assim – mas hoje, no presente, não é urgência minha nem por capricho e nem por desejo. Então duas coisas aparentemente inversas proporcionalmente são as duas únicas coisas capazes de medir – vejam bem: em intensidade, não em números, se é que é possível entender – as minhas relações. Insensível e egoísta? Talvez. Mas a realidade nunca foi cem por cento agradável, todos sabem.

Eu não dormi pensando sobre aquilo e nem passei os últimos dias lembrando daquela pergunta ou desse assunto. Talvez ela não tenha pensado sobre isso também – e espero que me perdoe se, ao contrário de mim, tenha gasto mais tempo idealizando o que nos representaria na pele, porque hoje ela mesma foi causa da resposta daquela pergunta e dessa minha percepção sobre o quão intenso é aquilo que eu sinto por algumas pessoas. E não é só amor, sabe? Não tem a ver só com o fato de eu oferecer minha vida em troca da dela, porque o amor faz isso comigo. Mas só amor não me faz cogitar tatuar o corpo. Amor é lindo, pode mover o mundo de algumas pessoas e é tema cativo das minhas palavras, mas toda regra tem exceção e, pra mim, a do amor é a tatuagem.

Pode ser uma lembrança não lembrada muito específica – ou até lembrada, mas não específica, mas o fato é que a resposta para aquela pergunta de mim nada mais pode tirar que um “sim”. Eu faria uma tatuagem com ela, assim como eu faria uma tatuagem com... Com quem? Com quem eu faria uma tatuagem? Eu não sei dizer que outro requisito, além do amor, é necessário. Porque, enquanto buscava respostas para essa outra pergunta, eu percebi que era um amor muito intenso que fazia o coração bater por aquele, por aquela, por um outro ali, uma outra aqui, mas não era ele suficiente para me dar coragem de encarar a tinta marcando minha pele – o amor também tem lá suas covardias, é preciso aceitar.

Eu não vou dizer quantas pessoas – muito menos quais - substituíram a última palavra da pergunta “eu faria uma tatuagem com fulano? ”. Mas o fato é que foram poucas as vezes em que eu realmente considerei a possibilidade de marcar a pele com qualquer coisa que representasse qualquer outro corpo além do meu, apesar de já ter conversado sobre isso tantas vezes. E vem aí então a consequência maior de tudo isso: eu não minto sobre o amor, mas eu minto sobre tatuagem. Não aquela mentira inocente, que a gente diz boa parte das vezes em que acredita estar vivendo algo que vai ser pra sempre. Nem aquela mentira dolosa, consciente que o tempo tá sendo gasto com algo que o outro quer de verdade e a preocupação em agradá-lo.

Eu minto porque, regra geral, um pacto de sangue não vai estar lá no futuro. Uma tatuagem vai. E é como se, aqui dentro, existisse um “Manual Sobre Tatuagens” anexo ao “Manual Completo Sobre Como Fazer da Sinceridade a Base de Uma Amizade”, mas em momento algum parte dele. Raras são as vezes em que a iniciativa sobre esse assunto parte de mim – talvez as únicas que meus interlocutores podem já saberem-se conscientes do meu sim – mas em nenhuma delas (não recordo agora, pelo menos) demonstrei qualquer desinteresse sobre o assunto. Porque, me desculpem a franqueza, eu não só minto, eu minto bem sobre tatuagens, oras.

Sei que muitos dos meus amigos não passam dos trechos na página do Facebook ou sequer leem as coisas que escrevo, mas se for um deles e ficar curioso para saber o que tatuaríamos juntos ou porque eu não faria uma tatuagem com você, tenha isso em mente: eu estarei sendo forçado a mentir, porque a tatuagem não só é minha exceção na regra do amor, mas está para ele tal qual o erro para nós, então deixo-lhes de antemão minhas desculpas. Porque vou desbravar a criatividade buscando inspiração para tornar visual o motivo pela qual é óbvio que eu faria uma tatuagem com você. Eu poderia usar minha ignorância como desculpa, mas – ainda que ela seja – isso agora seria como uma mentira baseada em outra mentira, o que não tem a mesma consequência para mim tal qual para o ladrão que rouba ladrão.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Você, Augusto

 

Quem era você, Augusto? Uma noite, uma diversão, um clique retribuído com afeição. Você era um final de ano, a lentilha cheia de esperança no bolso da calça que nunca iria virar dinheiro. Era o risco mais rabiscado que eu me atrevi correr e, tão logo cometi a primeira de tantas outras verdadeiras loucuras, eu comecei a me perguntar quem eu era. Porque eu só podia realmente estar louca em dar razão a uma paixão de verão como se pudesse ser adolescente aos vinte e cinco anos de idade.

Quem é você, Augusto? Eu venho me perguntando desde então. Uma hora brincalhão, vez ou outra sem noção de tempo e espaço – causa da minha irritação. Num momento cheio de planos, em outro – às vezes sem perceber – sem qualquer esperança quanto à existência de planos meus para nós dois. Um dia avacalha minha paciência, tocando a campainha do vizinho e correndo às gargalhadas, noutro me acorda de madrugada para dizer que me ama. Até hoje eu não sei quem você é e por favor não me diga porque, veja só, eu não quero saber.

Quem será você, Augusto? Essa pergunta até atiça mais a minha curiosidade, porque só vivendo para responder. Viver tal qual nós viemos fazendo nesses três últimos anos: será que faremos cabo de guerra nas quartas de futebol? Você irá me afrontar um dia em defesa de alguma amiga? Dias depois me defender de algum amigo machista? Vou ganhar café da manhã na cama em um aniversário de namoro? E será que você vai dormir no sofá no ano seguinte por esquecer que eu fiquei de fazer o jantar, porque era quarta, dia de jogo e você chegou bêbado – e me chamando de louca porque nosso combinado era jantar às duas e meia da manhã.

Quem era, quem é, quem será, não me importa. Me importa você, Augusto. Me importa esse voar mais alto da loucura – que passou a me acompanhar depois que você chegou – e te ter me trazendo à realidade quando sua fantasia chama. Me importa mesmo é termos sido, o que somos e, prefiro nem imaginar, o que seremos. Talvez estivéssemos realmente perdidos e nos encontramos sem saber que estávamos nos procurando. Ou talvez ainda estejamos perdidos, vai saber, mas é porque é assim mesmo que é pra ser. Perdidos ou não, estamos encontrados.

Tem dias que não me reconheço, tem dias que fico em dúvida se te conheço de verdade. Mas, desde aquele primeiro dia – e eu posso parecer uma louca dando essa intensidade ao nosso primeiro encontro, mas o que somos nós se não a maior loucura que vivemos? – eu não tenho dúvidas que até o fim seremos “nós”. Mas, só pra constar, os dias de hoje e amanhã serão exceções à essa regra que criei pra mim sobre um quem desconhecido, porque, olhando pra você agora, não tem como existir qualquer outra resposta para as perguntas sobrem quem você é e quem você será. Hoje você é meu noivo. Amanhã será meu marido.

Mel

De quando me calei

 
 
Vivíamos tão perto e sequer nos cruzamos antes de você partir e se apaixonar. Estivemos nos mesmos lugares, talvez até olhando na mesma direção, mas nunca naquela em que cruzaríamos os olhares. Mas é como eu sempre digo: as coisas acontecem quando tem que acontecer – se Deus escreve mesmo, tenho certeza que é por linhas tortas que chegam os acertos – e, ao invés da exclusividade de uma lembrança visual, nos encontramos esse tempo depois daqueles desencontros pra eu ouvir suas histórias, colecionar inúmeros sorrisos seus na memória e ter uma das noites mais incríveis que eu jamais vou esquecer.

Isso pode parecer exagerado, mas não se assuste pensando que estou te nomeando o amor da minha vida até a eternidade. Nossas idades são prova que não tivemos os destinos traçados na maternidade e eu não tenho tempo de sair por aí roubando mil rosas pra levar até você – e, mesmo que tivesse, não conheço jardins com roseiras suficientes pra tornar real as loucuras de um Cazuza apaixonado. Sem contar que eu prefiro Renato com aquela história particularmente interessante sobre um Eduardo certinho e uma Mônica estranhamente fofa.

Como um dia disse Vinícius de Moraes: a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida. E como foi bom te encontrar, mesmo que outro tenha te encontrado antes. É que, às vezes, o simples fato de alguém nos fazer sorrir é suficiente para fazer desse alguém uma lembrança inesquecível. E, confesso, não é qualquer pessoa que consegue me fazer calar por tanto tempo – e por vontade própria – como eu não pude resistir e assim o fiz ontem para ouvir suas histórias.

Talvez esse ontem não venha a ser outra coisa que não essa lembrança a se perpetuar na memória, mas é fato que, enquanto lá estávamos, aquele momento era literalmente um presente. Meu discurso está demais? É que eu acabo sempre romantizando demais aquilo – quem, no caso – que me faz bem. Você é real por demais, mas a costumeira incerteza do amanhã faz do futuro apenas uma expectativa que deixo nas mãos do destino sua concretização. Enquanto isso, vou eternizando nas palavras o que não conseguiria materializar de outra forma senão escrevendo.

Onde você estava esse tempo todo? Agora sou eu quem pergunta, só por perguntar mesmo. Porque estávamos nos nossos devidos lugares, tal qual quando nos falamos a primeira vez e tivemos um tal de primeiro encontro. Único também? Talvez, mas – que bom! – suficiente para me ajudar a sair da mesmice que eu não via a hora de ver apenas quando olhasse pra trás. Não, você não foi como um despertar ou renascimento, porque, aí sim, seria demais e eu estaria próximo à loucura de um tal Cazuza. Mas, como disse, eu ainda prefiro o Renato. Assim como ele vejo um amanhã inexistente, então aproveito o hoje para agradecer por você ter me feito sorrir. E sorrir tanto como eu nem imaginava precisar.

Reitero, finalmente chegando ao fim – ufa, aquilo que disse depois que me despedi: não foi só o beijo, foi a sua companhia. Havia muito eu não ficava sem olhar o relógio por tanto tempo e sem culpa por chegar de manhã em casa durante a semana. Havia muito eu não ficava calado só prestando atenção no que outro alguém dizia pra mim. E havia muito tempo eu não me sentia tão feliz como naquele espaço de tempo entre nosso aperto de mãos e nosso último beijo. Obrigado por todos os sorrisos que eu pude distribuir hoje.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Sem graça

  

Invejo, em parte, o palhaço que se pinta pra não aparentar
O palhaço que, ao invés do picadeiro, usa a vida pra representar
Esse palhaço do cotidiano, que não cobra ingresso pra se apresentar
(em parte porque nem sempre a palhaçada serve para alegrar)

Esse palhaço torna a língua ácida, que queima, se não o corpo, a alma
E não tenho a malícia da esperteza, mas o desenrolar da ingenuidade
Que me faz sorrir a cada piada que esse palhaço da vida extravasa
Enquanto muitos, tantos outros, se esbaldam de ironias
Apontando unhas, dedos e mãos pelas costas do palhaço
(que acha que está sendo engraçado)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Diariamente

  
Já era manhã. Como todos os dias Renato desligava o despertador reclamando daquela música que ele não agüentava mais. Como toodos os dias ele levantou e seguiu para o banheiro onde, como todos os dias, escovava os dentes e tomava banho. Cara amassada no espelho. Não agüento mais essa rotina insuportável que é a minha vida. Renato puxava os cantos dos olhos, fazia caras e bocas procurando, como todos os dias, qualquer nova marca de expressão que refletisse os anos que já tinha passado.

Tinha trinta e sete anos, dois meses e vinte e cinco dias. Solteiro, morava com a vó. Como todos os dias, na hora de tomar café, assistia com ela o jornal da manhã. Bom dia, vó! Não venho almoçar em casa hoje. Já era de praxe: como todos os dias ele almoçava na firma. Era convênio, diziam eles, com a tia da marmita. E era mais barato que ir até em casa almoçar. Fora o trânsito caótico da cidade naquela hora do almoço. Como todos os dias ele sentava na mesma mesa, ao lado do bebedouro e de frente pra porta. Sozinho.

Saía do trabalho todos os dias às dezessete horas. O ônibus passava às dezessete e quinze, pontualmente. Como todos os dias ele já deixava as moedas à mão. Sempre pagava com moedas. Pra facilitar o troco do cobrador. Levava no máximo meia hora para chegar em casa. Abria o portão e tirava os sapatos ainda na porta de entrada. O cheirinho do café da vovó perfumava a casa inteira. Era assim todos os dias: café com bolachas amanteigadas antes da novela das sete. O dele sempre sem açúcar.

Como todos os dias Renato assistia a novela das sete com a avó. Ele no sofá, ela na cadeira de balanço. Entre eles a mesinha pequena com seus pires e xícaras de café. Como foi o dia hoje, meu filho? Ela perguntava com aquela voz falha, meio rouca e para dentro. Normal, vó. Como todos os dias. Nunca acontecia nenhuma novidade mesmo. Acabava a novela, já era hora de se deitarem. Renato levava a vó pro quarto, boa noite vó, e seguia para o seu. Como todos os dias, ele programava o despertador, deitava e, poucos minutos depois, adormecia.

Já era manhã. Como todos os dias Renato desligava o despertador reclamando daquela música que ele não agüentava mais. Como todos os dias ele levantou e seguiu para o banheiro onde, como todos os dias, escovava os dentes e tomava banho. Cara amassada no espelho. Não agüento mais essa rotina insuportável que é a minha vida. Renato puxava os cantos dos olhos, fazia caras e bocas procurando, como todos os dias, qualquer nova marca de expressão que refletisse os anos que já tinha passado.

Tinha trinta e sete anos, dois meses e vinte e seis dias. Solteiro, morava com a vó. Como todos os dias, na hora de tomar café, assistia com ela o jornal da manhã. Bom dia, vó! Não venho almoçar em casa hoje. Silêncio. Já era de praxe: como todos os dias ele almoçava na firma. Era convênio, diziam eles, com a tia da marmita. E era mais barato que ir até em casa almoçar. Fora o trânsito caótico da cidade naquela hora do almoço. Como todos os dias ele sentava na mesma mesa, ao lado do bebedouro e de frente pra porta. Sozinho.

Saía do trabalho todos os dias às dezessete horas. O ônibus passava às dezessete e quinze, pontualmente. Como todos os dias ele já deixava as moedas à mão. Sempre pagava com moedas. Pra facilitar o troco do cobrador. Levava no máximo meia hora para chegar em casa. Abria o portão e tirava os sapatos ainda na porta de entrada. O cheirinho do café da vovó perfumava a casa inteira, mas não dessa vez. Não foi como todos os dias: café com bolachas amanteigadas antes da novela das sete.

Diferente dos outros dias, ele subiu até o quarto da avó. Estava deitada, olhos fechados, sem respiração, sem pulso, sem reação. Não teve médico, enfermeiro ou reza que solucionasse. Morreu mesmo! Diziam. Mas ela não podia deixá-lo. Não daquele jeito, sozinho, sem café, sem bolachas amanteigadas, sem novela das sete. Foi cremada. E a urna onde a tinha posto adornava os vários aposentos da casa. Como todos os dias, Renato dava bom dia, dizia que não ia almoçar em casa e tomava café com bolachas amanteigadas enquanto assistia a novela das sete. Ele no sofá. Ela na cadeira de balanço.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Quando os opostos se completam


Foi então que eu descobri a verdade por trás daquela velha história de que os opostos se atraem. Já faz um tempo que eu descobri isso, mas só hoje me dei conta de que há tempos não te escrevo algumas poucas palavras. Quer dizer, trocamos mensagens diariamente, nos encontramos esses dias, mas tem meses que não te envio um e-mail e anos que não te escrevo uma carta. Escolhi o primeiro porque tenho essa necessidade da urgência, mais da sua leitura que de alguma resposta. Então hoje eu nem te vi partir como alguns meses ou anos atrás e fiquei, mais uma vez, me agarrando aos devaneios sobre a nossa história.

Eu sempre fui tagarela, é verdade. Só que falar de sentimento sempre foi uma coisa que eu fiz mais bêbado que sóbrio. E quantas vezes eu me entreguei ao álcool antes de abrir a boca, porque sabia que sem ele ficaria de lábios cerrados. Mas eu encontrei na escrita o meu modo de falar sem precisar da voz. E talvez eu não tivesse tido um melhor amigo; ou a casa de outro alguém para ir; ou talvez nem tivesse começado um curso de inglês ou recebido certificado do outro de computação; talvez eu não tivesse aberto o coração a mais ninguém não fosse quando o abri pela primeira vez naquelas páginas de caderno e fichário que trocávamos nos tempos da escola.

Pensando sobre isso, percebi o quanto éramos covardes. É, éramos covardes no fim das contas. Conseguíamos escrever pro outro todas aquelas bobagens – que, à época, eram a coisa mais séria de nossas vidas – mas raramente conversávamos olho no olho, mesmo quando já tínhamos idade suficiente para fazê-lo. Éramos covardes, afinal. Mas éramos dois covardes juntos. E fomos assim até precisarmos nos despedir. Hoje eu lembro daquela viagem em que nos tornamos membros de uma mesma família sem laços de sangue, e percebo que sua chatice e minha carência eram nada mais que consequência de não sabermos lidar com aquela experiência de precisarmos nos relacionar além do papel, de sermos obrigados a lidar com o outro na vida real.

Lembro do que considero um dos momentos mais incríveis na minha vida: dois anos e meio que você tinha partido, férias do meio do ano, eu e você dividindo a primeira madrugada só nossa de tantas que viriam nos anos seguintes. Aqui, na minha memória, é essa a lembrança do que eu considero nossa primeira conversa olho no olho, sem tinta de caneta para encorajar o desabafo. E é engraçado porque, passados quase dez anos daquela madrugada, ainda temos em comum um pouco daquela dificuldade em conversar algumas coisas pessoalmente. É engraçado porque, no fim das contas, o fato de termos demorado tanto para encarar as verdades olho no olho fez com que tivéssemos mais tempo para observar e conhecer o outro.

Conhecemos o jeito de escrever e conseguimos até decifrar o humor do outro só pela forma como respondemos uma mensagem de bom dia. Sabemos mais ou menos a distância exata daquele olhar distante do outro enquanto tomamos sorvete na praça. Podemos, quase que instantaneamente, ler a mente e declarar as mesmas palavras que o outro só pela troca de olhares. São essas algumas poucas razões do que está por trás da história de que os opostos se atraem, sabe? Enquanto teu silêncio atraía minha tagarelice, minha emoção tua racionalidade, teu receio a minha intensidade ou meus sonhos a tua realidade, nós queríamos completar o que nos faltava ao invés de esnobar o que sobrava no outro. Não é que os opostos se atraiam e pronto, sabe? É preciso que se completem. E a gente se completou. A gente se completa.

A distância, contrariando o pensamento comum e dando fim às nossas dúvidas pré-concebidas, não fez papel de rival e foi a principal aliada nessa história de amor entre um homem e uma mulher que nunca encostaram os lábios – a não ser nas vezes em que fizemos pose para foto ou brincamos durante uma bebedeira – e são incapazes de ter qualquer pensamento impuro um pelo outro. Há quinze anos éramos dois covardes aprendendo, juntos, a se fortalecer. Há doze anos somos opostos que se atraem à distância, mas se completam na presença um do outro. Há dez demos início a esse processo eterno de conhecer o outro enquanto conhecendo a nós mesmos. E tem seis que eu consegui controlar a ansiedade porque precisava te dizer algumas palavras e só o podia fazer te olhando nos olhos.

Já perdi a conta de quantas vezes nos despedimos e em quantas dessas despedidas meus desejos de boa viagem foram acompanhados de pedidos de desculpas e agradecimentos. Não lembro da última vez que choramos juntos no aeroporto, mas sei o quanto é no outro que nos agarramos em alguns momentos que parecem impossíveis de suportar. Hoje nós nos despedimos e deixamos na lembrança os bons momentos vividos e as expectativas pelo próximo encontro. E do mesmo jeito que meu excesso emocional não te cansa a alma, o teu silêncio nunca me fez sentir desmerecido. Ele só faz com que cada palavra sua, hoje muito além do papel, tenha ainda mais importância do que você imagina ao falar. Assim a gente se atrai. E assim a gente se completa.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Pra sempre


Eu me apaixonei por cada detalhe seu. Eu senti o mundo sumir quando dançamos juntos. Assim como aqueles garotinhos apaixonados em segredo se sentem quando próximos à sua paixão. Eu conheci um sentimento que achava já ter sentido outras vezes. Ah, o amor. Foi com você que eu soube o que era esse sentimento. Foi com você que eu fui capaz de quase encostar as pontas dos dedos no céu. Foi você quem fez o melhor de mim vir à tona. Aceitar o outro como é, sabe? E você fez isso. Quando eu me sentia tão inferior a tantos outros, você me mostrou que não. Você me fez acreditar que eu era diferente, mas jamais inferior. Era diferente porque eu me dispus a te dar o que você precisava, e você cuidou de me proporcionar o que eu achava que nunca teria. Eu me apaixonei pelo teu sorriso. Pelo teu jeito sapeca que, com o tempo, foi se moldando numa mulher. Bem que dizem que as mulheres amadurecem primeiro que os homens. Você é prova disso. Naquele tempo você foi crescendo. Eu meio que parei no tempo. Quis ser menino pra sempre, talvez. Quantas vezes quis te fazer cafuné e deitar no seu colo enquanto você afagava minhas bochechas. E eu nunca tive coragem de te pedir isso. Porque eu achava que talvez pudesse te machucar (mais do que já tinha machucado) e isso é o que eu menos quero. Aliás... é o que eu NUNCA quero. Tem horas que dói, mas é uma dor que me dói menos que aquela que eu vi doer em você. Eu agüento mais, não é? Um dia, quem sabe. Um dia que, talvez, seja pra sempre.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

(P)A(Z)niversário

 

“Feliz ano novo, como tu gosta de falar”. Talvez tenha tardado para que eu aprendesse. Talvez, na verdade, eu ainda nem tenha aprendido, porque a vida é do tipo de disciplina cujo aprendizado se perpetua e vai saber se não podemos dizer “eu aprendi” só depois que deixarmos ela para trás. Vai saber, eu nunca fui lá e voltei pra poder dizer. Talvez tenha tardado, pode ser o caso, para eu perceber que, tal qual nos estudos, passar de ano não significa um boletim preenchido apenas de notas máximas. Eu nunca quis ser bom em tudo. Sempre tem aquelas matérias em que nós só precisamos ser suficientes. E talvez tenha tardado para que eu deixasse qualquer mágoa de mim se esvair para deixar-me preencher tão somente de paz. Paz e amor. Paz é amor. Só amor não basta, mas senti-lo me é suficiente.

“Muito amor pra celebrar os dias bons. Muito amor pra suportar os dias ruins. E muita estrada pela frente, pra você continuar trazendo a primavera pra gente.” Foi isso que eu senti ontem: amor. Não lembrei do que não deveria lembrar, não pensei sobre o que não deveria pensar e nem remoí o que não merecia um segundo sequer de um dia que, com o passar de outros dias, eu venho deixando de romancear para fazer dele mais meu que da minha imaginação. Mas ainda assim não pude deixar de conter os sorrisos que se fizeram flores, com as quais irei florir essa longa estrada pela frente que eu tenho a seguir. Porque nada melhor que um sorriso para expressar gratidão a quem acredita tanto em mim, ao ponto de me olhar e dizer: “não vejo a hora de me perder numa cidade desconhecida com você".

Cantaram-me as palavras de Clarice – “de todos os loucos do mundo eu quis você porque a sua loucura parece um pouco com a minha” – e eu lembrei que era esse o nome de quem viveu uma história contada por mim, responsável pela lembrança de um dos dias em que eu mais tive fé em mim mesmo. O amor é louco, não é verdade? Não como a paixão, avassaladora, sem limites ou pudores. O amor é louco porque só loucura para explicar como dois opostos podem se atrair tanto ao ponto de não conseguirem nunca mais se soltar. Só quem é louco deseja se perder numa cidade desconhecida com outro louco. Só quem é louco pode dar fim ao que seria pra sempre e iniciar outro, já que “continuaremos a inventar tantos outros porque o nosso para sempre nunca acaba”.

Só quem é louco, reconheçamos, é capaz de admirar o que, por vezes, são as fraquezas do outro – no “tirar algo de bom onde não tem, enxergar a pureza alheia, essa mania chata de acreditar que tudo tem uma justificativa, fazer vista grossa pra não deixar de amar”, no meu caso – e fazer delas justamente mais um motivo para dar a esse outro um tanto de amor que o faz sentir como capaz de voar. Se estou voando, estou sonhando, estou imaginando, estou escrevendo. Escrever sempre será o melhor presente que eu posso me dar, seja qual for o tamanho da estrada de tijolinhos amarelos em que permaneço seguindo. Em cada palavra minha tem um cadinho de amor meu, ainda que sejam palavras carregadas de dor, porque nelas sempre haverá de existir as minhas maiores verdades. Ter alguém que sempre me lê e ouvi-lo dizer “você está escrevendo melhor do que nunca” é como saber-se ainda mais crescido, amadurecido e disposto a sentir orgulho do cara que fui por causa do cara que sou.

E o que mais eu venho tentando ser é menos mais do mesmo e mais de mim mesmo, o que naturalmente implica em ser exatamente mais do mesmo, mas o mesmo verdadeiro Artur. Não que minha história se fizesse exceção à veracidade, mas quem me deseja “mais, sempre mais, do mesmo, do novo, do desconhecido, do inimaginável, do surpreendente, do comovente ao envolvente” sabe o quanto me é difícil viver mais que basear-me em fatos reais. E ontem, na minha virada de ano, no início de mais uma volta ao redor do sol, eu percebi que só vivendo de verdade – quando ainda era menos, mas o mesmo que sou hoje – eu pude ficar na lembrança de quem disse: “o Artur veio pra ser nosso equilíbrio, ou tantas vezes a falta dele. Foi nosso porto seguro, nosso elo e, algumas vezes, nossos cabelos brancos”. Porque, no fim das contas, eu sempre fui meio contraditório mesmo quando se tratava de amor: o enaltecia, mas, vez ou outra, pisava nele e a outros machucava.

Mas é do amor que nasce o perdão. Se não houver amor – às vezes só o próprio mesmo, não há arrependimento. Não há humildade ou reconhecimento para com alguém se desculpar - ou para desculpar a si mesmo. Com amor estreitamos ainda mais os laços que nós próprios amarramos com aqueles a quem chamamos família, porque fomos abençoados com o dom de escolher entre tantos outros que não dividem o sangue, mas divinamente dividem conosco essa passagem pela vida, e assim os chamar. Família que escolhemos para compartilhar a vida. “Você é como família. Você pode fazer qualquer bosta para mim que eu vou te perdoar, vou aceitar, vou entender. E tudo o que você decidir da sua vida, para sua vida, eu to aqui” foi uma das últimas coisas que eu ouvi antes que se encerrasse o primeiro dia do meu novo ano. Talvez ainda não tenha dado tempo de fazer qualquer bosta, mas é que durante todo o dia de ontem eu me permiti sentir somente amor: amar e ser amado.

O amor não é cego, mas faz vista grossa porque tem coisa que preferimos não nos deixar enxergar. Mas o amor é bom e me permite saber quem, independentemente de corpo, do meu lado está ou não está. Talvez tenha tardado para que eu aprendesse, talvez eu nunca aprenda, talvez tenha tardado para que eu percebesse: às vezes até quem a gente acha que não está lá, faz justamente desse o jeito de nos fazer enxergar que o amor está – se não camuflado na distância, guardado na lembrança que nada além disso será. Talvez tenha tardado para que eu me desse conta de que já sorri os sorrisos com que deixei mais florido o caminho que passei. E que qualquer outra vista além da minha vai vê-los porque quer ver, sem que eu precise pedir, suplicar ou obrigar. Talvez tenha tardado para que eu começasse a plantar mais sorrisos que lamentar aqueles que outros deixaram desfalecer à beira da estrada. Eu já os sorri. Quem quiser vê-los tem o caminho livre. E quem não quiser é que vai perder de sorrir junto desse sorriso torto e não só cheio de amor, mas de uma beleza que só o sol se pondo ontem conseguiu disputar o que mais me deu paz no primeiro dia do meu novo ano.

Ainda estou nessa luta tentando ser mais e esperando não deixar de lutar nunca. Mas, defitivamente, parei de tentar conquistar aquilo que eu já consegui, porque preciso ser feliz e viver essa conquista: o amor que, cultivado nas flores, nos sorrisos e no amor de tantos outros, eu hoje sinto mais por mim.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Não precisa ser grande


A primeira melhor pessoa que eu tive na vida foi ela. Estava lá quando eu nasci e estava aqui, hoje, ouvindo minha voz de quem segura o choro engasgado. Ela me ensinou a andar e, vez ou outra, também era dona do pé propositalmente colocado onde eu pudesse tropeçar. Escrevi poemas, cartas, desaforos, letras de música e tantos outros conjuntos de palavras, mas, por ela, eu usei os lábios para falar tudo o que sentia pela primeira vez. Eu chorei quando a decepcionei e sorri quando pude lhe dar alegria. Eu fui amoroso, simpático, legal e sincero, mas também lhe mostrei o que de pior existia dentro de mim. Eu acreditei nela, perdi sua confiança e não hesitei em dar-lhe perdão quando magoado. Eu a vi se decepcionar comigo, quis ser melhor por ela e, só após muitos anos, consegui perceber que foi ela a responsável por eu sentir saudade pela primeira vez. Eu deixei de lhe cumprimentar apenas com bom dias e passamos a falar sobre nossos dias. Eu a vi ir embora e também disse, olhando em seus olhos, que não acreditava nela. Levei tapas quando queria um abraço e só entendi o porquê quando fui eu o responsável pelos tapas ao invés do abraço que ela queria. Eu a fiz chorar, sabe-se lá quantas vezes, mas ela nunca me deixou em nenhum momento. E eu sei disso porque, ao invés de me proteger do mundo, ela bateu a real e preferiu fazer jorrar mais lágrimas dos meus olhos com a verdade que me fazer sorrir com a mentira. Ela estava lá quando eu caí. Ela esteve lá todas as vezes em que eu caí. E deu a mão para me ajudar a levantar quase sempre. Porque houveram aquelas vezes em que ela simplesmente me ignorou e continuou a sambar com alegria, vezes que me ensinaram justamente isso: tem hora que o samba diz mais que algumas poucas palavras de consolo. Ela me fez ter medo da morte, disse que morreria comigo e, sem saber, me fez prometer a mim mesmo nunca mais escolher deitar e morrer ao invés de se erguer e viver. Ela me apresentou músicas, livros e lugares novos e agradeceu quando eu lhe dei paz – mesmo sem saber que ela pedira isso para mim no silêncio de sua preocupação de que eu lhe entendesse mal. Ela enfrentou todos os comentários maldosos e foi ser feliz, porque ela não só me aconselhava como seguia seus próprios conselhos. Ela tinha regras, tinha exceções, foi livre e, quando mãe, confiou em mim para cuidar de seu bem mais precioso. Ela me fez transformar distância em adubo para o amor, mesmo quando foi embora fazendo de mim seu único motivo para não sorrir. Ela traiu minha confiança e me fez ver o amor como aquela exceção à regra de não perdoar traição. Eu estive no fundo do poço com ela. E não só já me vi sozinho como já a vi sozinha envolta naquele monte de lama, enquanto, tal qual ela havia feito uma vez, eu apenas olhava da superfície sem jogar-lhe uma corda porque ela precisava sair de lá por conta própria. Com ela eu aprendi a confiar e respeitar os segredos sombrios que todo ser humano carrega dentro de si. E me permiti sofrer, porque ela sempre soube quando havia algo errado e não conheço ninguém no mundo além dela que seja capaz de interpretar meu mais mínimo gesto. Ela sabe quando eu estou feliz, quando estou triste e quando deve me despertar de um sonho e trazer meus pés de volta ao chão. Ela me encontra todos os dias da semana, em casa, no trabalho, na rua ou num único de milhares pensamentos diários. Ela entra na sala de embarque, me encontra no bar uma hora depois e sempre está em casa quando eu chego de madrugada. Ela canta, escreve, fotografa, dança e também foi presenteada com o dom de não deixar a rotina fazer dela alguém que não sorri para quem só precisa de um sorriso. Ela carrega muita mágoa e é desprendida de qualquer sentimento ruim que possa lhe fazer adoecer. Trabalha de oito da manhã às seis da tarde, sem horário de almoço. Consegue trabalhar só nos fins de semana e faz das madrugadas regadas a estudo o sacrifício necessário para um bom salário dali uns meses. O abraço dela é o mais confortante de todos. As palavras dela podem vir com dor, com ardor ou com amor. E ela também, eu já percebi, escolhe deixar a verdade pra amanhã quando não é o que se precisa fazer hoje. Sabe como me irritar, e foi responsável por eu sentir orgulho do meu nome pela primeira vez em voz alta. Ela procura problemas e é uma das pessoas mais experientes em livrar-se daquilo que causa mal. Ela é menor que eu, mas alcança a prateleira mais alta se for preciso. Posso dizer que foi a única a conhecer minha história desde que nasci, porque me viu crescer e me faz pensar no quanto ainda preciso evoluir para deixar de ser visto ainda como uma criança. Ela cresceu mais que eu e faz aniversário mais de um ano antes de mim. Ela chutou o balde uma vez, duas vezes, todos os dias. E escolheu ser dona de casa porque não nasceu para trabalhar. Quando eu precisava de alguém a quem me agarrar, era ela que estava lá. E até hoje é nela que eu penso quando me vem aquela vontade de desistir e eu preciso de um motivo para ficar. Ela me pediu desculpas quando não precisava e não perdoou quando eu cometi o terceiro erro imperdoável. Eu lhe dei segunda, terceira, quarta, quinta e outras inúmeras chances. E aprendi que amor de verdade não precisa de sangue para acontecer. Eu talvez nunca chegue a ser um grande homem, mas o homem que hoje eu consigo ser eu só posso ser por causa delas. Hoje é o meu dia e o meu dia é delas. Porque, sim, todos os dias deveriam ser delas. Mas elas fazem da sua existência algo tão carregado de pureza que são incapazes de cobrar de mim o reconhecimento de que a razão de um dia ruim terminar bem é justamente o fato de tê-las na minha vida. Não precisam ser grandes e nem fazer-me sentir assim. Para mim, basta apenas que vocês existam.

domingo, 6 de setembro de 2015

Você é minha amiga


Você é minha amiga e eu te amo. Eu sempre te digo isso, mas você sempre sai com aquele sorriso de quem prefere deixar pra lá o sentimentalismo, porque sorrir é mais legal que chorar emocionada. Mas a gente é bobo e se emociona até quando está sorrindo, né? Ser bobo, você sabe, tem menos a ver com bobagem e mais a ver com coragem. A gente é bobo e ri de nós mesmos e de tantas coisas que essa vida insiste em jogar na nossa frente, porque ser sério leva a gente a ganhar mais, mas a sorrir menos. Você é minha amiga e eu te amo, sabe? Queria te dizer isso assim, de um jeito narrado, dissertado, poético e dedicado nas minhas palavras pra você ver que nessa minha bobagem de querer ser escritor eu tento ser sério pra dedicar aos meus os meus melhores sentimentos e, mais que isso, o melhor de mim. E você, minha cara amiga, merece e sempre vai merecer o melhor de mim.

Eu não sei se já te disse alguma vez, mas você roubou o dia seis de quem dele foi dono por tantos anos, mesmo sem nem estar aqui presente. Roubou é forte demais, mas a gente é mais forte que isso e aguenta o tranco. Roubou mesmo. Roubou com vontade e – confesso – com minha permissão e, por tabela, da dona anterior também. O dia seis se fez teu por merecimento, por cuidado, por gratidão, por ser pessoa espetacular tal qual você se faz ser no dia-a-dia desse alguém aqui que, vez ou outra, não se enxerga tão espetacular quanto você consegue enxergar. Você, minha cara amiga, consegue me fazer sentir como uma das melhores pessoas do mundo, quando na verdade eu devo isso a você. E eu te amo, sabia?

Não tem como não amar quem consegue fazer um colorido tão brilhante daquele dia que começou cinza, com um simples chocolate ou bombom de café deixado em cima do teclado na mesa de trabalho. Não tem como não sentir amor por quem me enxerga como personificação do meu próprio sonho, quase que se fazendo meu espelho quando me olha nos olhos e diz com os seus: escreve, que tu escreve bem e esse dia é seu e vai lá fazer o que você sabe fazer melhor que é ser essa pessoa feliz e incrível que todo mundo gosta. Se me gostam, é porque também se fazem gostar. Se eu sou incrível, é porque pessoas incríveis como você me ajudam a ser assim. Eu não sei o que seria dos meus dias sem você. Porque você é minha amiga, mas eu te enxergo tantas vezes como irmã que meu amor se faz de amigo-irmão, mesmo sem saber se é assim que pra ti eu sou.

Eu queria poder te presentear com outras palavras mais lindas, mais poéticas, mais sucintas e diretas tais quais aquelas tantas que eu aprendo diariamente com você. Mas eu me perco, porque, sinceramente, eu não sei exatamente o que dizer. Vem lágrimas aos olhos, vem lembranças daquelas tantas vezes em que eu não sei se estaria aqui de pé hoje se não fosse você. É, e talvez tudo isso sem você perceber. Porque eu sei que você fecha os olhos porque prefere muitas vezes não ver o quão bem me faz e quanto importante na minha vida é você. Você é minha amiga e eu te amo. Eu te amo muito e te desejo tanto amor, mas tanto amor que não me cabe no peito nem em palavras tudo aquilo que o mundo deveria ser pra te ver sorrir. Você é incrível. Nós somos incríveis. Eu te amo, minha amiga. Feliz aniversário.

sábado, 5 de setembro de 2015

Eu te amei

 
Eu te amei como poucas vezes amei alguém. Amei de um jeito diferente de todos os outros que amei. Amei ao ponto de enfrentar todas as barreiras pra te ter ao meu lado. Eu me doei de corpo inteiro. De alma, de coração. Me apaixonei pelo seu cheiro, pelo seu rosto, pela sua boca, pelo seus braços, pelo seu abraço. Você me abraçava e eu sentia que o mundo podia desabar, mas eu estaria seguro. Eu desenhei no céu todo o futuro que poderíamos ter: casa, panelas, fogão, guarda-roupa conjunto, cama e colchão. E eu imaginei que existiriam duas crianças ali. E que seríamos o casal perfeito, morando na casa perfeita. Eu criei expectativas sobre a diversidade de coisas que poderia nos acontecer. Eu desbravei meu cérebro pra ele te aceitar com todos os defeitos que logo eu soube que você tinha. Eu te aceitei exatamente como você é, lutando sempre e pedindo, com todas as minhas forças, com tudo o que eu mais podia contar aqui dentro, pra que você consertasse todos os seus erros. Porque eu estaria aqui esperando a redenção. Eu estaria aqui como sempre estive. Eu estaria sempre esperando. Eu te amei de forma que você pudesse me completar. Eu te amei ao ponto de te deixar pra trás por reconhecer que eu não podia completar você.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Amadusofrer

  

Eu não sei se você lembra, mas foi com você que eu falei a primeira vez sobre isso. E quando digo que falei a primeira vez entenda que eu nunca havia falado – ou mesmo escrito – sobre isso nem para meu próprio reflexo. Tem quase um ano que eu me dei conta do quão amargo é o gosto da pena quando sentida por si mesmo. Quase um ano que eu te confessei, aos prantos: é muito bom ter amadurecido, mas eu abriria mão do amadurecimento por um passado sem tanto sofrimento. Não quero me fazer de coitado – você sabe que eu não suporto isso, mas não existe outra palavra pra traduzir aquela sensação quase insuportável, que revirava o estômago enquanto eu me via como a salvação de alguém que estava correndo perigo de si mesmo: porque eu não podia receber amor de volta se era amor o que ao outro dedicava? Ora, não devemos esperar dos outros o que fazemos por eles, já diz um velho ditado. Mas não era isso que eu buscava. Eu só queria amor, sabe? Sim, eu me senti amado. E não tenho dúvidas que você também. Mas... Sentir-se amado não quer dizer ser amado, não é? Do sentimento do outro a gente só pode saber baseado na fé de que ele é recíproco ao nosso. Na fé, nas palavras e nos gestos. Quando só a fé já não era suficiente, juntou-se à falta de gestos e palavras – ou aos atos de desamor – e fez do sofrimento conformismo: não é que eu não era amado, é que eu não merecia ser amado. Aceitar algo tão desumano para si é horrível, principalmente por ser tão difícil conseguir se ver livre desse sentimento para abrir o coração e deixar que outro alguém o encha de paz.

Eu sempre acreditei em contos de fada, você sabe. Não desse jeito que muitos falam, que tudo é lindo e maravilhoso. Nos contos de fada sempre tem o lado ruim para que o lado bom prevaleça. E o final “para sempre” não é tanta certeza quando acaba num casamento. Mas, ainda assim, eu sonho com contos de fada. Sonho com os obstáculos que a gente enfrenta, mas que valem à pena pelo amor que se dá e pelo amor que se recebe de volta. Naquele dia, quase um ano atrás, enquanto conversávamos, acabei revisitando o passado, resgatando memórias dos últimos dez anos – da primeira vez que eu namorei sério até as histórias de amor mais recentes – e percebi o inevitável: apesar de aparentemente tão crescido, experiente e amadurecido, libertar-me da dor não quer dizer que eu a extingui. E doeu muito, sabe? Doeu porque eu finalmente consegui me fazer ver que, diferentemente do que eu acreditava, toda aquela dor se fez trauma. Porque, depois de me sentir liberto pela primeira vez, eu me deixei invadir pela paixão e me entreguei de corpo e alma a quem acreditava ser a pessoa mais incrível que eu poderia conhecer na vida. A mesma pessoa que, dali uns dias, terminaria comigo por mensagem poucas horas depois de acordar ao meu lado. Eu não merecia a hombridade de um fim pessoalmente. Se nem isso merecia, quanto mais o amor de alguém. Assim eu entendi esse receio em me entregar a alguém de novo: o meu medo não era que uma nova história não acontecesse, mas que acontecesse.

Você, eu lembro bem, jogou pro alto os planos que fizera pra si e fez pouco dos planos que te desejaram quem te queria bem. Porque só abdicando de si mesma seria possível ficar do lado de quem você realmente queria estar. Você sofreu, aprendeu na marra que o sofrimento nem sempre é opcional, porque, quando se percebeu amando sozinha, acabou acreditando, como eu, que não merecia ser amada de volta. Era a culpa. Essa mesma culpa que te invade a cada pedido de desculpas sem a mínima reação do outro lado. Errar é humano, não esqueça. E quando erramos em decorrência do medo de viver novamente uma dor que se fez trauma, precisamos perdoar a nós mesmos antes de pedir perdão. Isso me lembra da única vez em que não só me senti amado como tive certeza que era amado de verdade. A única vez em que o amor foi puro do lado de lá e que, por minha culpa, eu precisei por fim. Essa lembrança é a única coisa que consegue me fazer sentir dor pelo simples fato de ser quem eu sou, sabe? Eu não deveria sentir culpa por ser como sou, mas eu senti. No entanto, ainda que doa um cadinho aqui ou ali, eu consegui me perdoar pela mágoa que causei buscando ser feliz.

Eu tenho esperança, você já deve estar cansada de me ouvir falar. Eu tenho esperança que um dia posso encontrar alguém que vá me dá amor da forma que eu mereço realmente. Eu sei que eu sou uma pessoa boa, mas, infelizmente, preciso lidar com o fato de que existe um trauma. O trauma de não querer sentir novamente essa esperança se esvair. Eu não quero mais ser a salvação de alguém sem poder ter esse alguém como minha salvação também. Eu não to colocando responsabilidade das escolhas individuais para outras pessoas. Quando eu falo de salvação eu quero dizer que não me importa nem um pouco fazer mil coisas por alguém e esse alguém não fazer metade por mim. Não precisa fazer nem metade. Mas... me faça sentir ter o valor que eu sei que tenho, sabe? Porque eu sei que eu tenho. Mas foram muitas frustrações, muitas decepções, muitas lágrimas e noites mal dormidas para superar e voltar a acreditar nisso. E aí quando eu conheço uma nova pessoa, eu acabo travando antes de me permitir conhecê-la mais, e de lhe permitir me conhecer mais. Por isso eu entendo você e esse jeito ríspido com que você acaba extravasando sua insegurança. Nós temos medo. Medo de nos sentirmos assim de novo. E isso, às vezes, nos faz perder o controle sobre atos, palavras e pensamentos que carecem de repreensão.

Eu sei que faz parte do processo. Quantas vezes eu já disse isso pra você? Mas quando o medo vira pânico, nós acabamos perdendo o controle sobre ele. Aquela dor foi algo muito ruim de sentir. Ser chamado de gordo por quem de você só recebe elogios; ser traído tantas vezes; não merecer um fim cara a cara de alguém que eu julgava tão acima de todas as decepções; ver que você é tão idiota ao ponto de fazer dos outros membros da realeza enquanto se sente sapo, quando na verdade deveria ser o contrário. Eu sei de todo o meu potencial. E mais uma vez eu consigo reconhecer isso depois de tanto tempo. Eu sei que perder isso novamente, me perder por alguém, é dor demais na lembrança para arriscar sentir de novo. Talvez seja esse o motivo de estar tão bem sozinho. Talvez seja a solidão o mal necessário para você conseguir, em meio ao furacão emocional que está passando agora, se reerguer e fazer valer essa pessoa tão maravilhosa que você, vez ou outra, insiste em tentar esconder aí dentro, vestindo de revolta a sua sensibilidade.

Talvez você tenha medo de ficar sozinha. Mas eu te garanto uma coisa – que pode até parecer triste, mas me garante certo conformismo e tranqüilidade na consciência: pela primeira vez tanta coisa boa tá acontecendo comigo e para mim que eu não me sinto a vontade de ter alguém do lado para compartilhar. Porque compartilhar por compartilhar eu faço ali no Facebook, no blog, onde quer que seja. Compartilhar pra crescer junto, que é o que eu mais anseio, é difícil quando se acostumou a amar sozinho. Amar sozinho, dói. E talvez ainda não tenhamos estrutura suficiente para agüentar mais uma vez essa sensação de que não recebemos amor de volta pelo simples fato de não merecê-lo mesmo. É por isso que, mesmo com esperança de um amor pra vida inteira, quando olho pro futuro eu me vejo num apartamento sozinho, recebendo amigos, mas com uma cama de casal inteira só para mim. Amar sozinho não só dói, como é gota d’agua em qualquer centelha de esperança na entrega do meu sentimento para outra pessoa. O primeiro passo para mudar isso é se perdoar. O que vier em seguida é lucro. Seja quem você é hoje, sem medo do julgamento alheio. Não interessa a ninguém, se não a nós mesmos, as nossas batalhas, as nossas dificuldades e as nossas conquistas. Mas sempre tem alguém que se importa e torce para vencermos as lutas e recebermos nossas medalhas. Eu sei que você torce por mim. E eu, assim como sempre estive aqui, continuo a torcer pelas suas. Espero que você se sinta amada por mim. Te garanto que, de fato, além de sentir você é verdadeiramente amada.

Amadurecer não é fácil. Mas fica menos difícil quando alguém amamos nos dedica um beijo no coração.
Um beijo no seu coração.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Apenas seguindo


Eu não te excluí da minha vida. Porque, de certa forma, ainda preciso de você aqui comigo. Aliás, nem é o fato de precisar, mas é o fato de querer você aqui comigo. Se não fisicamente, apenas um pedaço seu, esse pedaço que eu posso ter. Não há mágoa, não há vitória, nem há derrota. Existe apenas o sentimento de desejar com todas as minhas forças que alguma coisa ainda mude. Não sei por quanto tempo vou esperar mudanças, mas eu sei que elas ainda não aconteceram tanto assim. Houve, sim, algumas, é fato. Que, em outros tempos, teriam feito uma diferença enorme. Não, não. Não é só desse lado aí, é do lado daqui também. Mudanças mútuas que, se tivessem acontecido antes, talvez trouxessem outro desfecho para o que esperamos que se inicie novamente. Eu decidi não te mandar embora, mesmo que quando você apareça cause uma reviravolta em toda a evolução que tive no decorrer dos dias, semanas, meses, que você esteve distante. A sua presença me faz bem, assim como sei que a minha presença também te faz bem. Nós sabemos disso, porque nós sentimos isso. E, no vai e vem das pessoas que aparecem em nossas vidas, eu tento me encaixar em algum dos movimentos alheios para suprir essa, talvez, necessidade, que ainda tenho de você. Você diz que não, que não consegue, que fica alheio em relação a esse tipo de coisa. Mas não está aqui comigo. Não consegue daí, mas não abre mão do orgulho e vem envolver-se nos meus movimentos. Movimentos esses que eu, por vezes, faço pra você. E talvez você os perceba, mas finja que não. Vai ver que é mais fácil pra você assim, não é? Mas o tempo tá passando. Eu não sei mais se espero e, se continuar esperando, até quando. Hoje te vejo como uma incógnita. Antes você me trazia soluções, me dava respostas. Hoje ficam as dúvidas pairadas no ar. Demonstrações de ciúmes, leves cobranças, um relacionamento velado. Enquanto você tá aí, sem me dar resposta alguma, eu to aqui tentando achar outras respostas para outras perguntas. Mas quando estou quase respondendo tudo, você aparece como um furacão e causa essa reviravolta na minha vida. Tem horas que eu realmente não sei o que fazer. O fato é que estou apenas seguindo. Sem seguir tanto assim.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Dentro de nós


Lembrei de quando tinha essa idade. Me senti menino de novo. Peter-pan, se quiser encantar. Sorri como há muito não sorria e brinquei como há muito tentava brincar. Senti saudade de um naquele momento. Um saudosismo, digamos assim, porque foi quando o conheci. Talvez tenha sido isso o que me levou a, tão de repente, querer ligar e pedir pra tentar de novo. E depois, quando vivi a liberdade de não ter que me explicar, esqueci de novo o que não deveria lembrar.

Com os dias fui empilhando tijolos. Comecei a construir uma nova casa. Ainda está na base, mas com o tempo ela toma forma. E é melhor que demore para que eu possa saber onde colocar as colunas que vão sustentá-la. Afinal para ter segurança é necessário que haja um bom teto, que não desabe em qualquer tempestade. Uns são tijolos, outros cimento, e assim a complementação vai acontecendo. Estou feliz por enquanto com as coisas como estão.

E nos reencontros da vida, as conversas corriqueiras, as brincadeiras de casinha, onde você cozinha enquanto eu lavo a louça. Vamos jogar como adultos, lembrando os tempos de criança. Ou de adolescente, quem sabe. Somos todos cúmplices, afinal. Porque aqui não há segredos. Somos livros abertos entre nós mesmos. Nossa própria biblioteca. Tarda e vão embora, mas deixando o sintoma de saudade que não precisa ser ruim. Daqui a pouco a gente se encontra de novo.

O parquinho que transforma a roda. Estamos juntos, encurralados entre fumaça e devaneios por vezes absurdos. Mas há um encantamento aí, meio imperceptível. Recebo elogios, adentro brincadeiras e assim vou levando, seguindo a vida, do jeito que aprendi nos últimos dias: deixo o muro levantado com uma escada do lado. Quem quiser subir está convidado. E assim tem acontecido, sutilmente ou não. Pode brincar à vontade, mas saiba que tem uma hora que você pode se encantar comigo e não querer mais largar. Nessa hora talvez eu já tenha largado você.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

João e o pé de algodão


- O algodoeiro cresceu?
- É, e cresceu muito.
- Esse algodoeiro do outro lado da cerca? – ela apontou para o pé de algodão que tinha os galhos iluminados pelo sol da manhã, tentando disfarçar o riso de chacota.
- É, esse aí mesmo.
- Sei. E você acordou agora jogado na grama, com essa roupa molhada?
- É.... Vai ver que eu estava desmaiando e delirei né? E às vezes chove aqui e não chove na cidade. Se eu desmaiei, vai saber se não peguei chuva. Mas, espera aí. Como é que você me encontrou aqui?
- O carro da mãe tem GPS, esqueceu? 
...

Era um novo ano, primeiro dia de um janeiro que todo o resto do mundo via apenas como véspera de uma quinta-feira com cara de domingo. Justamente naquele dia em que ninguém queria estar só, eu escolhi a solidão. Fugi da farra de champanhe e resolvi desbravar a estrada até a casa de campo da família, para me embebedar de estrelas e cheiro de mato naquele quintal que contava parte da minha infância. Anos tinham se passado desde a última vez que eu me permitira descalçar os pés e sentar na grama a admirar aqueles pontinhos brilhantes.

Naquele dia minha única companhia era o som do silêncio, cortado apenas pelo vento quando fazia as folhas daquele pé de algodão farfalharem no escuro. Reconheci não só pelos frutos iluminados pela luz da lua, mas porque eu lembrava dele. Era eu quem, quando criança, cuidava de aguar e arrancar os galhos secos todo final de semana que compartilhávamos da natureza em família. Mas era janeiro e em janeiro o algodoeiro não dava frutos, então talvez fosse um bom sinal para o ano que se iniciava.

Lembrei que dinheiro não era promessa de um novo ano, já que deixara a lentilha longe de qualquer um dos meus bolsos. Eu precisava de paz e pensei que, de repente, aquele fruto branco e felpudo pudesse ser a forma do universo me dizer que os dias vindouros poderiam não ser financeiramente agraciados, mas seriam vividos, um após o outro, em paz. Atravessei a cerca e resolvi guardar aquela lembrança da infância como um amuleto, ainda que não fosse tão crente de proteções materiais. Foi então que eu vi, quase que instantaneamente à retirada daquele chumaço de algodão, o algodoeiro crescer.

Sem entender nada, fiquei inerte olhando de cima a baixo daquela árvore que ia instalando seus galhos através das nuvens no céu escuro. Antes que concluísse o pensamento sobre o quanto deveria estar fora do meu estado normal, percebi que um dos galhos gigantes vinha em minha direção. Fechei os olhos, na esperança de que aquela morte anunciada fosse o suficiente para eu acordar daquele sonho, que não tinha como ser outra coisa. Quando os abri, dei de cara com aquele galho gigante a alguns metros de mim. Estava pendurado a alguns metros do meu rosto, preso a uma corda que tinha sua extremidade segura por outra pessoa. Estava confuso, analisando aquele momento como se em busca dos pré-requisitos que o distinguissem entre sonho e pesadelo, mas nunca realidade. Um pé de algodão gigante podia ser efeito do álcool, mas alguém cair do céu em cima de um galho gigante era para além da imaginação.

- Sai daí, rapaz. Não tá vendo que essa porra pesa?

Eu não conseguia me mover. Não bastasse o fato de nunca tê-lo visto na vida, eu estava vivendo uma situação bastante inusitada que não permitia pôr os pensamentos em ordem. Gaguejei alguma coisa que não consigo lembrar exatamente o que era, mas fui interrompido antes que pudesse concluir.

- Levanta daí e sai de perto que eu não vou aguentar muito tempo. Faz o que eu digo e pergunta depois.

Atravessei rapidamente a cerca e sentei na varanda, sem conseguir piscar enquanto via a corda ser largada e aquele galho seco despedaçar-se no chão exatamente onde eu me encontrava segundos antes. O estranho enrolou a corda e a prendeu atravessada no corpo enquanto seguia em minha direção. Não fosse aquele brilho nos olhos que eu percebi tão logo ele atravessou a cerca, o pânico teria feito minhas pernas criarem vontade própria e correrem sozinhas até o carro para ir embora dali. E não fosse aquele jeito engraçado de andar, nem o encanto dos olhos me faria sorrir tão sem graça quanto quando ele curvou-se para se apresentar.

- Desculpa chegar assim, de forma tão violenta, mas quando eu vi aquele galho vindo na sua direção eu não pude continuar descendo tão calmamente como estava. Eu me chamo Henrique, e você? – o nervosismo me impedia de responder sem gaguejar - Ah, não importa. Eu vou chamar você de garoto de algodão, mas preciso dizer que você me lembrou um Tsuru. Sabe o que é Tsuru? É um passarinho que fazem de papel no Japão e representa... Bom, representa algo muito bom e eu olhei pra você e vi algo muito bom – sorri – Foi por isso mesmo, o seu sorriso. Você sorri sem graça, sabe? Eu admiro quem sorri assim, porque é o que faz caras como você serem esse tipo de cara que verdadeiramente são.

Pesadelo não era porque eu não tinha medo. E não estava mais assustado. Aquilo era um sonho muito fantástico que eu estava tendo, porque minha cabeça deveria estar precisando muito focar no que não existia para lidar com o que existia. A realidade ali não era provável. Ninguém morava nas nuvens, muito menos tinha como escada para a terra um algodoeiro gigante. Não era só improvável, era impossível. Tão impossível quanto disfarçar minha cara de entendedor ruim que precisa mais que uma palavra completa para entender alguma coisa.

- Bom, eu estou vendo esse ar de incredulidade no seu rosto. E não posso fazer nada quanto a isso, na verdade. Porque só depois que eu for embora é que você vai saber se eu sou ou não real. Não se preocupe, você não vai precisar escolher acreditar ou não nisso, Tsuru. Você vai saber e pronto. Mas antes eu quero saber se essa noite vai ser um monólogo ou você vai parar de sorrir desse jeito e conversar comigo – nem eu percebi que ainda sorria sem graça e sem piscar os olhos fitando os dele que brilhavam.

- Meu nome é Luís, mas pode me chamar do jeito que quiser – consegui completar a frase sem gaguejar, o que me deixou aparentemente surpreso.
- Perdeu o medo né? – ele disse como se tivesse percebido minha surpresa.
- Não tive medo.
- Nem quando aquele galho enorme ia na sua direção?
- Ah, naquela hora...
- Ok, sem explicações, garoto de algodão. Hoje eu explico. Hoje você sente.
- Não estou entenden... Aliás, primeiro de tud...
- Eu sei que você tá confuso, mas tudo vai estar mais claro quando eu for embora. Então não perde tempo questionando nada, porque, como eu disse, depois que eu me for você vai saber o que ainda precisar saber.
- Ok.
- Ok?
- É, ué.
- Eu sabia que ia ser difícil.
- Eu...
- Qual o problema em dizer que não é bem assim que as coisas funcionam? – ele interrompeu.
- Eu vou entender alguma coisa em algum momento?
- Você conhece a tal história do João e o Pé de Feijão, né?
- Conheço. Agora é Henrique e o Pé de Algodão?
- É, boa tentativa. Foi sem graça, mas já é um começo.
- Será que um beliscão resolve? – eu perguntei enquanto apertava a pele do braço fortemente entre dois dedos, garantindo apenas uma feição de dor.
- Ah, Algodão Boy, eu não tenho muito tempo. Queria te ensinar a rir mais de si mesmo e brincar mais com a vida, mas não tenho horas suficientes pra isso. Então deixa eu ir direto ao ponto: eu quero que você reescreva essa história aí do João.
- Como é?
- É. O cara para quem eu contei quis ganhar dinheiro em cima das crianças e fez tudo errado.
- Como assim?
- Sabe o gigante? Pois é, sou eu.

Primeiro fiquei surpreso. Não consegui esboçar nenhuma reação até o riso se desprender e eu precisar me segurar na parede. Cogitei a possibilidade de algum primo ter batizado minha taça de champanhe com algum alucinógeno, porque... Não. Aquilo não estava acontecendo.

- Enquanto você ri, eu explico: foi tudo culpa da sala de espelhos que eu tenho em casa. Se você rir alto desse jeito eu não vou conseguir explicar. Desculpa fazer isso, mas eu não tenho muito tempo e preciso da sua ajuda – mesmo sendo pouco maior que eu, o tal Henrique conseguiu me dominar e me amarrou sentado junto de uma das colunas da varanda. Pegou um balde largado próximo à lavanderia, encheu e, ignorando minhas promessas de ter controle sobre o riso, encharcou-me por inteiro com água gelada – Agora você vai ficar quieto.
- Não abro mais a boca.
- Bom, eu não tenho tempo para as incongruências da história que foi compartilhada, e você ainda não é um escritor que receberá honras por reescrever uma história. Não que você não seja capaz, meu caro, não precisa dessa reação marrenta. Você precisa escrever uma história nova, e eu tenho uma história nova para você. É sobre um garoto que queria ser grande. Ele não queria crescer não, ele queria ser grande. Porque ele gostava de brincar, mas tinham uns garotos maiores que ele que faziam dele a brincadeira. E ele crescia e continuava pequeno. Parecia que, quanto maior ele desejava ficar, menor ia se tornando o espaço em que ele podia sentir-se livre: se não bastassem os grandes da rua, agora os grandes de casa insistiam que ele não era quem dizia ser, afinal não existe exceção para a regra que tudo na vida são escolhas.
E ele continuou:

O nome desse cara era João. E quando ele fez dezoito anos, eu resolvi presenteá-lo com a solidão. Ele já estava sozinho, afinal. Nosso primeiro encontro, assim como aconteceu com o autor daquela versão, foi na sala de espelhos. Foi lá que o João conseguiu se ver grande pela primeira vez. Foi quando eu finalmente pude me ver maior que todos aqueles que faziam pouco de mim. E sempre que eu tentava ir embora, era como se uma sombra de medo estivesse em meu encalço. Durante vários dias eu fiquei ali, só admirando meu reflexo gigante no espelho. Num desses dias apareceu um cara que não viu que aquele era apenas um reflexo enorme de um João que se encontrava contido num dos cantos da sala. Aproveitei sua distração pela quantidade de seus próprios reflexos, e ameacei esmaga-lo com o polegar, revelando o truque tão logo ele começou a chorar desesperado. E eu gostaria de ter uma boa lembrança de quem foi minha única companhia naqueles três anos que se passaram depois daquele dia. Porque, mesmo que eu fosse maior, só ele conseguia me fazer sair da frente daquele espelho sem que aquela sombra de medo me acompanhasse. E só assim eu conseguia voltar para casa.

No decorrer daqueles anos suas visitas começaram a ficar cada vez menos frequentes. E quanto menos visitas, mais tempo em frente ao espelho. E quando haviam quase seis meses de sua última partida, ele retornou para se despedir pela última vez. Tanto tempo me vendo gigante fez com que eu realmente me visse daquele tamanho. Mas ele sabia que era um reflexo e, mesmo sendo realmente menor que eu, depois de ter minhas lágrimas como comprovação da eficácia de suas palavras depreciativas, empurrou-me na direção daquele João gigante, originando uma enorme rachadura no espelho. Só ali eu percebi que, depois de três anos, eu nunca tinha perguntado seu nome, porque o choro que se seguiu foi a única forma que encontrei de substituir aquele grito seco que, sem nome, ficou preso na garganta. Só descobri quando vi a capa do livro que conta a história fantástica de um menino que sobe num pé de feijão até o céu e encontra um gigante, deixado para mim de forma anônima na porta da sala de espelhos.

Eu sabia que os verdadeiros João e Gigante eram uma pessoa só, mas fiquei muito tempo naquela sala de espelhos, lendo e relendo aquela história até perceber que não importava se maior ou menor que eu, minha fraqueza era justamente o fato de eu ser fraco. E que ele dera meu nome a si mesmo, porque o dito herói da história levou embora tudo o que era de valor para o outro, milhares de vezes maior. Acompanhei a superfície – que refletia quem eu queria ser – ser tomada pelas linhas de rachadura que iam se acumulando cada vez mais. Eu era um gigante desfigurado agora, mas ainda era um gigante, pelo menos para mim. E eu estava sozinho, não tinha porque querer ser maior ou me sentir menor que outro. E quando caiu o primeiro pedaço de vidro no chão eu deixei de contar os dias porque não queria ficar pensando que no dia seguinte poderia ir todo o restante abaixo.

Então eu não sei dizer exatamente quanto tempo faz entre aquele dia em que o primeiro pedaço foi ao chão e hoje, quando o chão da sala de espelhos se rompeu e tudo ficou suspenso num algodão gigante. Fazia esse tempo que eu não via o céu, que não escutava esse silêncio cortado hora ou outra pelo vento e me encantava com esse pisca-pisca das estrelas. Eu te vi ainda lá de cima e, tão logo cheguei aqui e vi o seu sorriso, lembrei de você: o garoto de algodão. É, eu lhe chamava assim. Eu não sei se você veio aqui outras vezes, mas antes de hoje foi justamente naquele mesmo dia em que o primeiro pedaço do espelho caiu que eu te vi pela última vez. Pela sua cara deve fazer bastante tempo a última vez que você veio aqui, mas eu deixei de crescer quando parei de contar os dias. É, essa é a verdadeira galinha dos ovos de ouro. Mas, não.

Quando o chão se rompeu minutos atrás abaixo dos meus pés, eu imaginei que aquela sensação de liberdade fosse fazer do meu reflexo a última coisa que eu gostaria de ver. Já recuperado do susto, mas distraído pela surpresa da sua presença logo hoje, acabei tropeçando num galho e só percebi aquele espelho quando quase transformei meu nariz num só. Eu sorri. Não precisava ser maior, mais forte, mais bonito. E eu lembrava dele. Estava do lado oposto àquele que me fazia gigante. Eu sorri sem graça, um sorriso que há muito eu não via. Era o primeiro em muito tempo e era o meu. E enquanto eu descia, antes que aquele galho viesse na sua direção, cheguei à conclusão de que uma história sobre João e o Pé de Algodão cairia bem como apresentação para o garoto que deitava na grama e chegou juntar mesada por seis meses para comprar o que um coleguinha da primeira série disse que eram feijões mágicos, mas descobriu-se sementes de algodão depois que brotaram do solo os primeiros vestígios de sucesso no plantio.

- Eu nem lembrava desse acontecimento.
- Depois de passar a cerca, eu te vi rindo sem graça. Fazia esse tempo que eu não via um sorriso sem graça desse, puro, sem nuvem preta ou branca. Tal qual eu sorrira para mim minutos antes. Eu lembrei que você deitava na grama, vez ou outra com um caderninho em mãos, escrevendo histórias sobre colônias de formigas gigantes que não faziam mal aos humanos porque eles eram bonitinhos. Nessa época eu ainda saía da sala de espelhos e era legal ler histórias tão absurdas quanto carregadas de mensagens sobre nunca deixar de ter esperança. Eu achava bonito isso, mas o fato de me sentir pequeno fazia com que, ao ter que escolher entre ver beleza e poder me sentir maior, eu preferia este último. Que dia é hoje?
- Hã?
- Que dia é hoje?
- Ah, é que você perguntou do nad... Primeiro de janeiro – respondi após uma ameaça com o balde em mãos.
- Eu preciso ir. Tem outras coisas que precisam ser feitas antes que você conclua a história. A propósito, você vai escrever a história não vai?
- Eu estou um pouco confuso, Henr... Joã... Qual seu nome afinal?
- Ah, desculpe encurtá-lo no começo. Não queria que você pirasse mais ainda ouvindo o nome de alguém que você tinha certeza que estava delirando ao encontrar. Eu sou João. João Henrique.
- João, Henrique e o Pé de Feijão Que Virou Algodão.
- Horrível. João e o Pé de Algodão. É plágio?
- Acredito que sim. João e Henrique, o Encontro dos Gigantes.
- Desculpa, mas agora não vai dar pra gente discutir título. Você vai começar hoje, assim que eu for embora. Não apresse nem atrase. Faça no seu tempo, mas comece hoje. Não fosse você eu teria receio em dizer isso, mas sinta-se à vontade para transformar minhas poucas palavras na quantidade de páginas que quiser. Eu preciso ir agora porque daqui pra frente a história é sua. Confio na sua criatividade para não temer um futuro escrito pelas suas mãos, mas quem sabe não nos encontraremos por aí para dar um ar de realidade para essa história fantástica?
- Mas você vai pra onde?
- Recomeçar.
- Recomeçar onde?
- Ah, todo mundo tem o seu lugar para recomeçar. Aqui não foi o seu? Segue me conselho: começa hoje. Quem sabe meu recomeço não seja exatamente o lugar que sua imaginação criar?
- Sei. E eu vou começar como amarrado desse jeito?
- Já vou desamarrar. Antes preciso fazer uma coisa.
- Que coisa? – nem me dei ao trabalho de espernear. Quando o vi enchendo o balde novamente já sabia que mais um banho viria pela frente e nada poderia impedir.
- Esse foi para acordar a mente. Deixa eu te desamarrar. Olha, não começa uma busca por mim que você não vai chegar a lugar nenhum. Começa uma busca pela história. Se você quiser realmente contar essa história, a minha história, você vai conseguir me encontrar.
- Eu posso ter toda essa certeza? – ele virou as costas e seguiu rumo ao portão que dava acesso ao interior da cerca, me fazendo virar-lhe as costas quando desisti de esperar uma resposta.
- Você vai saber o que precisar saber. Não é exatamente o que você quiser saber. Não é só o fato de “querer não ser poder”. É o fato de que às vezes a gente procura resposta para perguntas que nós não fizemos. E já basta o tanto de certeza que a gente precisa ter na vida para perder tempo solucionando problemas que não são nossos. Quando você encontrar as respostas para aquelas que são suas perguntas, você vai saber.

...

- E porque você queria tanto ficar sozinho?
- Eu achei que eu quisesse, sabe? Mas, na realidade, eu precisava.
- Para ver um pé de algodão gigante?
- É, talvez tenha sido isso mesmo – olhou para cima, cegando a vista com a luz do sol, mas sorrindo sem graça porque sorrir sem graça era uma das coisas que o faziam ser o tipo de cara que verdadeiramente era.